sexta-feira, 11 de junho de 2010

Conto

Entre Pecados e Sobremesas


Era domingo, estavam todos sentados à mesa. O almoço tinha o mesmo cheiro gostoso do mormaço e da brotação daquele novembro quente e úmido: ki bebe, carne de porco bem fritinha, arroz branco, feijão com lingüiça e pele de porco, farofa e muita salada, tudo muito bem disposto sobre a toalha branca bordada com Richelleau. Na parede, um quadro da santa ceia rodeado de retratos da família em poses ensaiadas. A fome era muita, mas a tentação dos salgados não era suficiente para desviar meu olhar do prato de arroz com pêssego que aguardava passivamente na mesinha auxiliar.
Calor, gostosuras e uma tarde que prometia banho de chuva, um quadro perfeito se não fosse a oração. Sempre tinha a hora de agradecer a Deus pela comida farta, pela saúde e por mais um dia em família.
Vó Bina comandava a reza, mãos postas, cabeça baixa, olhos cerrados e uma sisudez de rocha que, entre dentes, me repreendia:
- Ana, feche os olhos, baixe a cabeça e reze, senão...
O senão era uma sentença indiscutível, quase um paradoxo ditatorial. Até hoje não entendo como vó Bina, mesmo de olhos fechados, controlava tudo e todos, por certo possuía a dita terceira visão, ou, então, via com os olhos d’alma.
Eu me esforçava para manter a submissa posição enquanto cochichava palavras desconexas, verdadeiros enigmas, refúgios para minha inconformidade e indignação; a vontade era de subir na cadeira e bradar a toda voz:
- Não vou agradecer..., não vou rezar..., não quero mais ir ao catecismo..., não gosto de Deus ...
Se tivesse coragem de expor os sentimentos seria deflagrada uma catástrofe, uma fissão no alicerce familiar, com saldos de culpas, acusações e sentenças nada condescendentes, uma já bem conhecida: ficar em pé no canto da sala de visitas com a boca pulsando pimentas, estas, até menos indigestas que as zombarias dos irmãos mais velhos (Júlio e Pedro que carregavam escapulários no pescoço), a imobilidade funérea das paredes e a privação da sobremesa.
As manhãs eram insuportáveis, mas descartáveis. Afinal, não caberia tanta animosidade dentro de um só coração, porque das oito horas e trinta minutos as dez e quarenta e cinco, era a aula de catequese ministrada por irmã Lurdes num salãozinho ao lado da Igreja. Leituras, cantos, orações e no Pai-Nosso sempre dava mais ênfase ao “livra-nos do mal”, mas não havia subterfúgios. Por fim, padre Aurélio chamava a todos até a tribuna das penitências - isso tudo era certo - nunca faltava.
Por ordem alfabética eu era a primeira da lista de chamada e quase tinha uma síncope quando avistava a silhueta forte e imponente que surgia na porta que com voz firme e solene, bradava:
- Aninha vamos começar!
Minha alma, momentaneamente, se ausentava, fugir... fugir...fugir..., mas para onde se Deus vê tudo em todos os lugares? Se não havia nem caminhos, nem refúgios no reino de Deus pai todo poderoso. Acuada, repetia em pensamento:
- “Seja feita vossa vontade assim na terra como no céu”.
A caminho do confessionário, um passo à frente e dois atrás, tentava imaginar o inferno, tão horrível como pintavam porem, o máximo que conseguia era compará-lo às pimentas, ardido, mas suportável. Na verdade a imagem de Deus e do diabo me pareciam tão semelhantes e confusas, remetendo a uma espécie de dualismo existencial: morrer, ir para o céu ou para o inferno; ou viver ocultando a inconformidade entregue ao suicídio diário e inevitável dos dias.

Já no confessionário, padre Aurélio perguntava:
- Aninha quais os teus pecados da semana?
Com a voz embargada e o corpo trêmulo, respondia gaguejando:
-Na.. na..não pequei padre.
A réplica vinha, imediatamente, em tom antagônico
- Já falei Ana, o verdadeiro cristão é aquele que peca e expia seus pecados entregando-os a Deus, não tenha medo, Deus é nosso Pai, nosso mestre, ele sempre perdoa... venha, chegue aqui bem pertinho que vou ajudá-la.
Num misto de nojo, medo e respeito, levantava, tapeava levemente os joelhos e entrava na cabine do confessionário, padre Aurélio fechava bem a cortina com um grampo, colocava-me entre suas pernas e acariciava meu pescoço esguio, meus cabelos negros e escorridos, minha boca rosada, minhas pernas longas e finas. Segurava-me pelos quadris ossudos e salientes, abraçava-me fortemente enquanto suava e gemia como se sofresse dor. Finalmente suspirava, beijava-me a face e dizia:
- Este é um pecado da carne, minúsculo para uma menina de sete anos, mas o suficiente para merecer o perdão de Nosso Senhor... vamos rezar um Pai-Nosso e uma Ave-Maria: Pai nosso que ..., Ave Maria cheia de ....Amém . Vá em paz e que Deus a acompanhe.
Na pressa de ir embora, engolia o amém, saia correndo e gritando:
- Não precisa me acompanhar, vou sozinha... Vou sozinha...
A caminho de casa olhava para os lados, para cima, para baixo a fim de certificar-me da solidão. Esta, na verdade, era a única certeza que me acompanhava: O repúdio à salvação do céu e aos martírios do inferno. Por fim, o único alento que me conduzia era a lembrança do sabor doce e curativo das sobremesas.



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